sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Medos e atrasos



Estou atrasado. Não sei mais quanto tempo, pois o tempo parou. O tempo parou quando o aço frio tocou a minha pele a primeira vez. Quando perdi a última conexão com o mundo. Quando olhei para frente e não vi mais nada. O tempo parou quando quis que ele parasse e nunca mais voltasse.
Sou de uma família tradicional. Fui criado por minha avó. Estudei até o ensino médio em colégios católicos. Fiz coral. Cantei na missa de domingo. Nunca fui suspenso. Nunca fiquei de recuperação. Nunca recebi advertência.
Não preciso me preocupar com dinheiro. Estou na terceira tentativa de faculdade. Tenho todo o apoio da minha família. Moro com uma mulher que faz de tudo para me apoiar e me entender. Nunca senti na pele preconceito.
Em todas as instâncias de minha vida, tento compreender todos os lados de um determinado problema. Tento olhar criticamente para tudo que faço, digo e penso. Acredito no respeito a todos os seres e procuro aplicar isso todos os segundos enquanto estiver respirando.
Ainda assim sinto o peso da culpa. Vejo o quão privilegiado sou, mesmo sem querer. Mesmo sendo contra privilégios, isso não é o maior motivo. É porque percebo que esse não sou eu. É o que as pessoas veem.
Tenho medo. Medo de ser quem sou. Pois por mais que seja contra privilégios, não sou forte. Não sou corajoso. Sou uma coisa quebrada. Algo incompleto. Não sei se conseguiria lidar com a alternativa. Vejo o que as pessoas são submetidas por serem elas mesmas e tenho medo. Faço o possível para mudar esse mundo para os que sofrem com ele. Mas não consigo assumir que sofro também.
Não me classifico. Não pretendo. Num mundo perfeito não importaria. Mas nesse, isso me coloca em um ponto ainda mais frágil, pois nenhuma bandeira me cobre. Mesmo se deixasse de lado meu medo, me recuso a escolher uma. Já tenho problemas demais sem ser colocado em uma camisa de força.
Olho para trás e vejo todos os pontos onde o universo me apontou um espelho. E vejo que o medo me cegava. O medo é uma ferramenta poderosa. Mesmo sem perceber, ele está ali, moldando você em algo desprezível. Só queria ter percebido os sinais antes. Queria ter entendido minha insatisfação, meus sentimentos, meu deslocamento. Agora estou atrasado. Anos atrasado. Já perdi muita coisa.
Vejo que me bolha estourou. Não sei por onde começar. Vários caminhos se desenrolam a minha frente. Não sei qual o próximo passo. Sinto o medo em um ombro e o vazio no outro. Não sei como expulsá-los. Quero gritar. Não consigo.
Vejo o tempo passando. Vejo o mundo a minha frente. Pela primeira vez me vejo como sou.
Não sei o que fazer.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Pílulas

Estou funcionando. Faço tudo que preciso. Não tenho nenhum problema. Nenhum perigo. Exatamente às dez horas, de manhã e a noite, eu engulo um pequeno pedaço amargo de sanidade. E é o que preciso para continuar assim. Todos comemoram.
Mas que motivo há para eu comemorar? Funcionar se tornou sinônimo de viver? Precisar de querer? Minha vida é um relógio. Eu um ponteiro. As pílulas o mostrador. Só quem está de fora consegue apreciar a bela obra de engenharia que sou.

Eu olho para a cápsula na minha mão e tento lembrar o que ela me trouxe. Desisto antes que isso me lembre o que ela levou. Engulo-a seca e de uma vez. O mundo precisa de bons relógios.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Sem título

O sinal fecha comigo entre pistas. Tinha que ser hoje! Justo quando havia me organizado para chegar cedo. Já perdi o ponto do ônibus e agora os semáforos não colaboram. Vou chegar atrasado. Esse sol desgraçado na minha cabeça. O suor escorrendo pelo rosto. Eu sinto a camisa grudando nas costas. Preciso de uma água bem gelada.

Tem uma arma na minha cara. A ponta do cano passa a centímetros do meu rosto. O metal negro refletindo o sol. A ameaça está ali. É a única coisa que eu vejo. Então vejo atrás do vidro um sorriso despreocupado. É divertido apontar a arma para os pedestres. Observar a reação deles. Sentir a impotência nos outros. Compensar a própria frustração. Tantas coisas que um sorriso pode revelar.



O carro de polícia passa. O sinal fecha. Atravesso a rua correndo. Vou me atrasar.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Folhas Mortas

Sento no banco da praça para esperar. Tenho alguns minutos. Ainda está claro, mas o sol já se escondeu atrás das montanhas. Tudo tem um tom avermelhado. A iluminação pública acentua o vermelho. Começa a esfriar. O vento forte balança os galhos das árvores. O barulho é de chuva. Fecho o casaco quando começo a estremecer com o frio. O tempo está mudando. Nuvens arroxeadas surgem do horizonte e começam a encobrir as primeiras estrelas.
Limpo meus óculos e olho em volta. Há uma multidão passando pela praça. Homens e mulheres indo para suas casas, passando sem olhar, cansados ou preocupados demais para reparar em qualquer coisa que não seus umbigos. Jovens indo para a faculdade, encontrando por ali os colegas que seguem pelo mesmo caminho. Casais sentados, aproveitando a vista e companhia um do outro. E eu vou andando.
Em um monte de folhas mortas, vejo algo. Com o canto do olho vejo uma imagem. Suas silhuetas se juntam para formar... O quê? Quando viro para ver melhor, a imagem se dissolve, sai de foco. Não consigo juntar mais as folhas, formar o todo. Parece que há algo ali, pronto para saltar. Apenas esperando o momento certo. Mas é só um monte de folhas.
Um aluno me cumprimenta. Um dos que sempre estão atrasados. Já escureceu. Olho no relógio. Estou atrasado. Me apresso para chegar na sala. O vento está mais forte. As folhas que algum jardineiro juntou se espalham por toda a praça. Vai chover. Eu já deveria estar dando aula há uns dez minutos. Não há mais nenhuma estrela no céu. Quando subo o primeiro degrau da escadaria, sinto uma gota de chuva entrando por dentro da minha gola.
Não é a minha aula mais empolgante. Não chega a ser chata, mas a matéria não ajuda. Uns dois alunos dormem descaradamente. Mas a novidade seria se eles estivessem acordados. Um grupinho conversa enquanto anota. Não chegam a atrapalhar e são bons alunos. O resto da turma assiste à aula em diferentes graus de atenção.
E acaba. Respondo perguntas sobre o trabalho final enquanto guardo minhas coisas. Passo na cantina para pegar algo antes de ir para casa. Antes de chegar à saída já ouço o barulho da chuva. Alunos e professores se amontoam na porta esperando a chuva estiar ou para abrir seus guarda-chuvas. Pego o meu e vou abrindo caminho para sair.
Um trovão ecoa por entre as montanhas. Sigo meu caminho em direção ao carro. Porque estacionei tão longe? O vento forte derruba as folhas das árvores e alguns galhos mais frágeis se partem. O guarda-chuva não ajuda muito. Já estou completamente ensopado quando chego à metade do caminho. Só espero que meus livros não molhem. Quando o vento dá uma trégua, a praça já está coberta de folhas, galhos e lixo.

Eu vejo, através de meus óculos molhados, uma forma nas folhas. As silhuetas se juntam com a distorção que as gotas nas lentes causam. Ali está o todo. É o momento. E ele salta.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Vazio


Era o horário do rush. As ruas estavam engarrafadas e as calçadas também. Era nessa hora em que a expressão “formigueiro humano” fazia mais sentido. Centenas de seres, andando apressados, com um destino certo em mente, só reparando em seus semelhantes quando esbarram entre si. E mesmo assim voltam ao seu trajeto original o mais rápido possível.
E ele, apenas mais um. Não havia o que o diferenciasse da massa. Roupa, cabelos, rosto, olhos. Traço algum sobressaia em meio ao caos que havia diariamente ali. Passava despercebido por todos, preocupados que estavam com os próprios pequenos problemas.
E também não percebia ninguém ao passar. Tinha seu destino e seus pequenos problemas. Ignorava o resto. Seus sentidos funcionavam apenas para evitar ser atropelado, tanto por carros quanto por seres como ele. Estavam amortecidos pelo barulho constante, pelo bombardeamento diário de informações, pelo desinteresse.
Mas algum nível de atenção ainda tinha, pois percebeu algo que ninguém mais havia percebido ao passar por ali. Uma mancha. Mas era mais que uma mancha. Ou melhor, menos. Era nada. Não existia na calçada e não tinha tamanho algum.
Todos que passavam por ali passavam à margem da inexistência. Mas sequer percebiam. Não haviam desviado, o espaço que se distorceu para não levá-los ao abismo. E eles seguiam adiante, e o mundo permanecia lógico e compreensível. Pois o vazio não os afetava.
Ele tentou passar à margem também, mas ao contrario do que acontecia com o resto, o espaço se distorcia para levá-lo de encontro ao que não existia. Mesmo andando na direção contrária, ele ficava mais perto. Só parado que ele não se aproximava. O medo o fez ficar parado. Ele não sabia o que era aquilo. E o desconhecido era atemorizante.
Mas o medo também acordou seus sentidos a muito adormecidos. E ele reparou nas pessoas ao redor. O mesmo efeito que fazia com que elas não se dirigissem a nada fazia com que elas não esbarrassem nele. Ou o ouvissem. Ou o enxergassem. Ele havia desaparecido da face da Terra se alguém se dignasse a procurar.
E o tempo continuou a passar. O rush passou. A rua ficou vazia. E ele ainda parado. O medo ficava cada vez menos forte em meio a outras sensações que começavam a tomar conta: sede, fome, sono... E, conforme o medo diminuía, dava mais espaço a curiosidade. A vontade de conhecer o desconhecido.
Lentamente se aproximou. Não era difícil, já que o vazio parecia puxá-lo. Cada vez mais perto, cada vez mais medo. Lentamente ele se aproximava. Até que chegou a distancia de um braço. Se ele se esticasse já conseguiria alcançar o nada. Ele ficou completamente parado. O medo se equilibrou com a curiosidade.
De perto ele pode observar melhor o vazio. Era um ponto, infinitamente grande, mas ainda sim um simples ponto. Nele continha tudo o que não existia. Não o que era imaginário, que existia na imaginação, mas sim o que realmente não existia. O desconhecido se tornou conhecido.
Era o horário do rush. As ruas estavam engarrafadas e as calçadas também. Era nessa hora em que a expressão “formigueiro humano” fazia mais sentido. Centenas de seres, andando apressados, com um destino certo em mente, só reparando os outros quando esbarram entre si. E mesmo assim voltam ao seu trajeto original o mais rápido possível.
Ele continuou seu caminho. Ele olhava para os lados enquanto andava, observando a diversidade quase infinita de pessoas na cidade. Ouvindo o rugido rouco dos motores e o grito histérico das buzinas. Sentindo o cheiro quente de fumaça e fuligem.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Seis fantasmas


Abro os olhos e vejo as imagens do meu sonho se dissolvendo em instantes na realidade do meu quarto. Os personagens piscam azuis e desaparecem com os dedos em riste na minha direção. A luz branca e forte do sol do meio dia se enfraquece até virar a luz amarelada e tênue do amanhecer.
Estou atrasado, mas não consigo levantar de uma vez só. O corpo não responde. Como um trem saindo da estação, acelero gradativamente. Tomo um banho rápido, um café e saio de casa. Não lembro o que sonhei, só das formas fantasmagóricas que sobreviveram a ele.
Sento na última janela disponível. Mesmo com o sol banhando meu rosto, fecho os olhos. O vento bagunça meu cabelo. Abro os olhos. Sobrevôo a cidade a uma velocidade absurda. Olho apenas para frente, a procura do meu destino e sem me preocupar com o que está atrás de mim. A cidade se expande por todo meu campo de vista, mesmo eu estando bem acima de seus prédios mais altos.
Ao longe, avisto uma mancha verde em meio à vastidão de concreto. Um parque. Ando por aqueles caminhos conhecidos enquanto uma multidão me encara raivosa. O lugar está mais cheio do que todas as vezes que passei por ali. Não reconheço nenhum rosto na multidão, apenas a expressão de ódio é evidente. Passo sem me importar muito com isso em direção aos brinquedos.
Seis crianças que brincavam ali param o que estão fazendo assim que me vêem. Encaram-me. Três casais.  Nenhuma com mais de cinco anos. Nenhuma sorrindo. Nenhuma chorando. E, em seus rostos, nenhum espaço para qualquer um dos dois.
Parado em frente aos brinquedos, um círculo se forma ao meu redor. As crianças a minha frente, impassíveis. A turba ao meu redor, exalando ódio. O tempo parado. Expressões congeladas. Mesmo os pensamentos são vagarosos como se estivessem nadando em melado.
Seis pequenos indicadores apontam em minha direção. O sinal é dado. A horda avança me cercando. Não há para onde fugir. Porque não existe essa possibilidade. Cada vez mais perto. Parado ali, espero apenas um instante para que elas cheguem. E a absorvo. O fluxo é infindável e sinto-me inchar cada vez mais. E mais pesado. E mais denso. E mais tenso. Explodo como um balão quando tudo acaba.    
Acordo um ponto antes de onde desço. Seis figuras fantasmagóricas apontam para mim a partir do sonho e evaporam.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Dia E


Faltavam dez questões. Mas eu não queria fazer sequer mais uma. Havia sido muitas questões, muito tempo. Meu cérebro já não estava mais funcionando como no inicio. Precisava passar algumas vezes pelo mesmo trecho do enunciado para entender o que ele pedia e mais algumas vezes pelas respostas para achar uma que coubesse na pergunta.
Mas a última coisa que poderia fazer era deixar questões em branco. Essa prova decidiria tudo. As colocações seriam definidas ponto a ponto. A insegurança batia forte. Eu não podia olhar a questão anterior, pois senão refaria uma questão que poderia estar certa, e então erraria. Mesmo se não errasse, perderia tempo.
Cinco já foram. Parecia que as mais difíceis ficaram para o final. Mas provavelmente era o cansaço falando. Os cálculos mais simples agora também precisavam ser feitos no papel. E mais de uma vez, quando o resultado não batia com nenhuma das respostas.
Tentava pensar que se eu fosse bem não precisaria mais passar por aquilo, que seria a última vez. Mas eu já pensara isso antes e aqui estava eu. Voltava para a questão. Mas por que diabos um pai iria fazer um testamento tão complicado? Coisas que só existem em provas...
A questão mais chata chega. A prova de paciência. Marcar o cartão de respostas. Preencher completamente as bolinhas. E não errar. As primeiras vão fácil. Porque realmente não é difícil. Mas depois vai enchendo o saco. A concentração evapora. Um quase erro, dois... E um erro. Atenção redobrada.
A última bolinha marcada. Todos meus músculos relaxaram mesmo eu não os sentindo tensos. Avisei o fiscal e fui guardando o material. Entreguei a prova e fui saindo. Outros também saíam, com expressões semelhantes de alívio. E uma nova angustia começava: A espera pelos resultados.