segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Pílulas

Estou funcionando. Faço tudo que preciso. Não tenho nenhum problema. Nenhum perigo. Exatamente às dez horas, de manhã e a noite, eu engulo um pequeno pedaço amargo de sanidade. E é o que preciso para continuar assim. Todos comemoram.
Mas que motivo há para eu comemorar? Funcionar se tornou sinônimo de viver? Precisar de querer? Minha vida é um relógio. Eu um ponteiro. As pílulas o mostrador. Só quem está de fora consegue apreciar a bela obra de engenharia que sou.

Eu olho para a cápsula na minha mão e tento lembrar o que ela me trouxe. Desisto antes que isso me lembre o que ela levou. Engulo-a seca e de uma vez. O mundo precisa de bons relógios.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Sem título

O sinal fecha comigo entre pistas. Tinha que ser hoje! Justo quando havia me organizado para chegar cedo. Já perdi o ponto do ônibus e agora os semáforos não colaboram. Vou chegar atrasado. Esse sol desgraçado na minha cabeça. O suor escorrendo pelo rosto. Eu sinto a camisa grudando nas costas. Preciso de uma água bem gelada.

Tem uma arma na minha cara. A ponta do cano passa a centímetros do meu rosto. O metal negro refletindo o sol. A ameaça está ali. É a única coisa que eu vejo. Então vejo atrás do vidro um sorriso despreocupado. É divertido apontar a arma para os pedestres. Observar a reação deles. Sentir a impotência nos outros. Compensar a própria frustração. Tantas coisas que um sorriso pode revelar.



O carro de polícia passa. O sinal fecha. Atravesso a rua correndo. Vou me atrasar.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Folhas Mortas

Sento no banco da praça para esperar. Tenho alguns minutos. Ainda está claro, mas o sol já se escondeu atrás das montanhas. Tudo tem um tom avermelhado. A iluminação pública acentua o vermelho. Começa a esfriar. O vento forte balança os galhos das árvores. O barulho é de chuva. Fecho o casaco quando começo a estremecer com o frio. O tempo está mudando. Nuvens arroxeadas surgem do horizonte e começam a encobrir as primeiras estrelas.
Limpo meus óculos e olho em volta. Há uma multidão passando pela praça. Homens e mulheres indo para suas casas, passando sem olhar, cansados ou preocupados demais para reparar em qualquer coisa que não seus umbigos. Jovens indo para a faculdade, encontrando por ali os colegas que seguem pelo mesmo caminho. Casais sentados, aproveitando a vista e companhia um do outro. E eu vou andando.
Em um monte de folhas mortas, vejo algo. Com o canto do olho vejo uma imagem. Suas silhuetas se juntam para formar... O quê? Quando viro para ver melhor, a imagem se dissolve, sai de foco. Não consigo juntar mais as folhas, formar o todo. Parece que há algo ali, pronto para saltar. Apenas esperando o momento certo. Mas é só um monte de folhas.
Um aluno me cumprimenta. Um dos que sempre estão atrasados. Já escureceu. Olho no relógio. Estou atrasado. Me apresso para chegar na sala. O vento está mais forte. As folhas que algum jardineiro juntou se espalham por toda a praça. Vai chover. Eu já deveria estar dando aula há uns dez minutos. Não há mais nenhuma estrela no céu. Quando subo o primeiro degrau da escadaria, sinto uma gota de chuva entrando por dentro da minha gola.
Não é a minha aula mais empolgante. Não chega a ser chata, mas a matéria não ajuda. Uns dois alunos dormem descaradamente. Mas a novidade seria se eles estivessem acordados. Um grupinho conversa enquanto anota. Não chegam a atrapalhar e são bons alunos. O resto da turma assiste à aula em diferentes graus de atenção.
E acaba. Respondo perguntas sobre o trabalho final enquanto guardo minhas coisas. Passo na cantina para pegar algo antes de ir para casa. Antes de chegar à saída já ouço o barulho da chuva. Alunos e professores se amontoam na porta esperando a chuva estiar ou para abrir seus guarda-chuvas. Pego o meu e vou abrindo caminho para sair.
Um trovão ecoa por entre as montanhas. Sigo meu caminho em direção ao carro. Porque estacionei tão longe? O vento forte derruba as folhas das árvores e alguns galhos mais frágeis se partem. O guarda-chuva não ajuda muito. Já estou completamente ensopado quando chego à metade do caminho. Só espero que meus livros não molhem. Quando o vento dá uma trégua, a praça já está coberta de folhas, galhos e lixo.

Eu vejo, através de meus óculos molhados, uma forma nas folhas. As silhuetas se juntam com a distorção que as gotas nas lentes causam. Ali está o todo. É o momento. E ele salta.