terça-feira, 29 de março de 2011

A casa


Era um velho casarão da época de ouro da cidade e ele já tinha visto dias melhores. Um pedaço do telhado havia apodrecido e caído, e as paredes que um dia foram brancas estavam pretas de mofo e sujeira. As janelas eram buracos que davam em um negro vazio e a grande porta principal estava sempre aberta, como um convite aos corajosos. Todos conheciam aquela casa. E cada um tinha uma história diferente sobre ela.
A história mais contada era a dos primeiros donos da casa. Um casal sem filhos. O marido era o dono da mais importante fábrica da cidade. Um homem severo, que tratava a tudo e a todos da mesma maneira: como os inferiores que eram. A esposa era uma mulher retraída, submissa aos caprichos do marido. Ninguém sabe ao certo o que aconteceu. Uma manhã, quando os empregados foram entrar para cuidar dos afazeres domésticos encontraram os dois mortos. Ele enforcado com o barbante do espartilho dela e ela empalada com o abridor de cartas dele. Uns defendem que ela se cansou dos desmandos do marido e o matou e depois vendo o que fizera se matou. Outros que ele suspeitava de traição e a assassinou, depois tirou a própria vida.
Mas essa não era a única história, embora talvez fosse a mais trágica. Depois desse episodio, uma série de acidentes, assassinatos e suicídios ligados direta ou indiretamente ao casarão se sucederam. Alguns, como a queda de uma das árvores da propriedade em cima de um empregado durante uma tempestade,  poderiam ser apenas acontecimentos fortuitos, mas outros, como o uso da casa como câmara de torturas de um serial killer, faziam as pessoas pensar que a propriedade estava amaldiçoada. Isso fez com que ela ficasse abandonada por quase vinte anos e chegado a um péssimo estado de conservação.
Mas a casa fazia parte da história da cidade. Todas as crianças já apostaram quem ia mais longe dentro do terreno, e os adolescentes iam para lá fumar escondidos. Com o tempo o lugar virou um marco para a cidade. Não apenas histórico, mas também popular. Mesmo que nos últimos anos ela tenha virado um abrigo de sem teto, ela ainda guardava um pouco daquela essência de um passado glorioso, ainda que sangrento.
Mas a prorpiedade ficava no centro da cidade, que apesar de tudo, estava crescendo. Então uma construtora comprou o terreno, demoliu a casa e construiu um lote de apartamentos no lugar.

sábado, 19 de março de 2011

Dois dias


Eu fiquei sabendo da noticia em uma manhã. A principio, parecia tão absurda que eu não acreditei. Mas eu fui ouvindo e ouvindo e percebendo que aquilo realmente fazia sentido. Tudo se encaixava. Eu ouvi em primeira mão, em circunstâncias que não convêm explicar aqui. Não havia erro. O que eu não daria por ter uma câmera comigo quando eu ouvi aquela conversa. A internet poderia ter feito todo o serviço. Agora e tinha que ficar procurando por órgãos que pudessem comprovar minha história. A Terra seria destruída em dois dias. E eu era o único que poderia impedir.
Minha primeira reação foi correr para os jornais. A população precisava saber. Liguei para o primeiro e comecei a explicar a situação: o que aconteceria, como eu havia descoberto, o que poderia ser feito... Mas antes de eu conseguir terminar, eu ouvi o clique do telefone sendo desligado. Eu não conseguia entender. Eu tinha provas. Eu poderia levar o jornal até os culpados.  Liguei para outro. A reação foi mais revoltante. No meio da conversa a telefonista não segurou a risada e soltou uma gargalhada que veio direto até atingir o meu orgulho. Dessa vez eu que bati o telefone na cara dela.
O próximo passo foi a polícia. Dessa vez eu fui pessoalmente. Expliquei novamente toda a história para a atendente. Dessa vez ela me encaminhou para um superior. Eu fui confiante que dessa vez eu fora ouvido. O “superior” começou a perguntar sobre a minha vida, como eu havia sido criado, se eu tinha algum trauma de infância... Fiquei revoltado. Eu não estava doido. Mas até eu conseguir ser liberado daquele interrogatório inútil, levou a o resto do dia.
A noite eu só tinha a internet para divulgar minha história. Mesmo sem vídeo, postei no meu blog, no Twitter, no Facebook, e até no Orkut. Todos comentaram. Todos acharam que era uma brincadeira. Eu linkei tudo o que podia estar relacionado a iminente destruição da Terra e mesmo assim não acreditaram em mim. Mesmo com todas as provas que eu tinha bem ali, debaixo dos narizes deles, se recusavam a acreditar que aquilo realmente podia ser verdade. Eu encerrei meu dia derrotado, esgotado e, principalmente, desiludido. Eu havia tentado todos os meios que eu conhecia e nenhum me dera crédito. Não consegui dormir direito. Toda vez que pegava no sono, um sonho de destruição diferente me acordava.
No dia seguinte tomei uma importante resolução, talvez a mais importante da minha vida: Se as pessoas não queriam me ouvir, eu que não falaria mais. Tirei o resto do dia fazendo coisas que talvez eu nunca fizesse em outras circunstancias. Declarei-me apaixonadamente para minha paixão secreta, almocei com um sem-teto no restaurante mais caro da cidade, dancei no meio da rua, visitei um manicômio... Fiz tudo que consegui pensar e fazer em tão pouco tempo. Foi o melhor dia de toda a história.
Mas não foi o último.

sexta-feira, 11 de março de 2011

O Momo


Era a cerimônia de abertura do Carnaval. Todos estavam atentos a passagem da chave da cidade para o Rei Momo. O momento em que, oficialmente, começava a festa oficial da cidade, seu farol para o mundo. O Prefeito fazia seu habitual discurso enquanto a figura bonachona ao seu lado aguardava ansiosamente.
Feito o discurso do Prefeito, chegou a hora da passagem da chave, feita de plástico e lantejoulas, mas carregada de grande significado. Por cinco dias, a cidade seria governada pelo Rei. Houve uma grande salva de palmas. Todos celebraram aquele momento de celebração da alegria. Mas ninguém viu o brilho nos olhos do Momo.
O primeiro dia de Carnaval ocorreu como sempre. Os bailes rolando nos clubes, os blocos correndo pela rua, pessoas festejando apenas a festa, outras festejando o desejo, outras não festejando e umas poucas amaldiçoando o dia que foi inventado o Carnaval. O dia transcorreu sem grandes problemas, apenas as ocasionais brigas por excessos da parte dos foliões.
No segundo dia tudo mudou. Um golpe de estado ocorreu. O Rei declarou a cidade independente. O Prefeito foi exilado. Tudo foi muito rápido. A maior parte da população nem viu acontecer. Tudo havia sido planejado há muito tempo, e todas as instancias do governo já sabiam do golpe e deixaram passar. Agora aquela era oficialmente a cidade do Carnaval.
O primeiro decreto do novo rei foi tornar todos os dias do ano dias de Carnaval. Todos pensaram que era apenas uma brincadeira, que tudo ia acabar na quarta-feira de cinzas e depois a vida voltava ao normal, então não ligaram muito. Poucos foram aqueles que acreditaram no que o Rei dizia. E nenhum deles pulava Carnaval. E este continuou.
Mas na quarta-feira de cinzas dois novos decretos saíram: Nenhuma fábrica ou comércio que não fosse de bebidas deveria funcionar e todo dia deveria haver pelo menos dez blocos na cidade, três bailes e um trio elétrico. Ai a comunidade entrou em rebuliço. Como iriam fazer para manter o Carnaval rolando infinitamente? E a economia?
Na quinta-feira o governo da cidade organizou os blocos, bailes e o trio. E ainda teve gente que foi. Mas a maior parte da população começou a se desesperar. Qualquer loja que infringisse a lei era fechada pelos policiais, que agora usavam como parte do uniforme uma máscara de carnaval.
Na sexta-feira as revoltas começaram. As pessoas foram às ruas pedindo o fim da festa. As forças policiais foram chamadas para manter a ordem, mas foram eles que começaram a violência. E quando ela começou não parou mais. Conflitos entre civis e policiais pipocaram pelas ruas. Mas foram perdendo força, à medida que os policias se uniam aos revoltosos.
Sábado foi o último dia do regime que durou apenas uma semana, de muita festa e revolta. As poucas forças fiéis ao Rei se entregaram e ele fugiu do palácio municipal sem ser visto. O prefeito foi readmitido ao seu antigo cargo. Foi permitido às fábricas e ao comercio abrirem no fim de semana para recuperarem o lucro perdido. E no ano seguinte, não teve carnaval.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Uns Telefonemas


Estava em dúvida se ligava ou não. Tinha medo de parecer desesperado se ligasse ou desinteressado se não. Simplesmente não sabia o que ela esperava. Podia somente me basear em meus conhecimentos puramente teóricos sobre relacionamentos. O que também não era grande coisa...
Liguei. Chamou a primeira vez. Só tinha o celular dela. Chamou a segunda vez. Disquei para ele mesmo. Chamou a terceira vez. Ela tinha falado para nos encontrarmos de novo. Chamou a última vez. Ela devia estar longe do celular. Desligo o telefone. Mais tarde eu ligo de novo, ou falo pela internet, onde tudo começou.
Esperei algum tempo antes de ligar de novo. Fui ocupar a minha mente com outras coisas. A televisão nessas horas era um bálsamo. Vi um programa inteiro antes de pensar em pegar no telefone. Quando o programa acabou, a indecisão bateu mais forte. Será que era o certo a se fazer?
Mais uma vez liguei. Mais uma vez ninguém atendeu. O desanimo começou a bater. Será que eu tinha entendido tudo errado? Aquele momento havia sido só meu? Não conseguia acreditar. Eu não poderia ser tão idiota, mas sobre isso tinha as minhas dúvidas. De qualquer forma, se eu tinha ligado duas vezes, uma terceira não faria mal.
Mais uma hora esperei. Dessa vez fui comer alguma coisa. Angustia me dava fome. Preparei um miojo. Não o da receita do pacote. Um incrementado, com frango de ontem e salsichas. Comi o meu banquete solitário, o que apenas serviu para aprofundar ainda mais a minha angustia. Eu não ligaria antes de passar uma hora.
Mas acabei ligando. E na terceira chamada ela atendeu. Um oi muito sem graça partiu do meu lado. Do lado dela foi mais firme. Eu não podia deixar minha insegurança estragar tudo, outra vez. Fui direto. Direto demais, eu diria. Perguntei se ela falara sério sobre nós sairmos mais vezes juntos.
Não. Ela não falara. Não falara nem isso, para ser exato. Apenas eu que com minha imaginação exacerbada interpretara um momento somente meu em algo mais sério e recíproco. Ainda falamos um pouco no telefone antes dela desligar. Só banalidades. Quando ela desligou senti apenas duas coisa, uma profunda decepção e uma leve sensação de alivio.

terça-feira, 1 de março de 2011

Uma Distopia


Vivemos em um mundo distópico. Mas o que é distopia? E a antítese da utopia. E a utopia, o que é? É um modelo idealizado de sociedade. Mas então porque falo que vivemos em um mundo distópico? Porque nos falta o essencial: idéias para mudar a sociedade.
Não que as revoluções sociais tenham deixado de existir, as revoltas no mundo árabe estão ai para provar isso, mas mesmo elas não visam criar um novo modelo, almejam apenas mudar de lugar no esquema pré-existente de uma sociedade opressora e sutil.
Opressora e sutil parecem termos antagônicos, mas se encaixam com perfeição para descrever a sociedade atual. É opressora, pois impõe modelos estéticos, éticos e comportamentais que devem ser seguidos. É sutil, pois impõe esses modelos não por normas ou leis, mas sim por meios de comunicação.
Por esses meios e pelo próprio tamanho das cidades, cada pessoa tem hoje muito mais pessoas com quem se relacionar do que há trinta anos, mas não há dialogo. Há apenas um individualismo extremo relacionado intimamente com as novas tecnologias, que tornam o homem ao mesmo tempo autônomo e extremamente dependente.
Autônomo, pois uma pessoa pode fazer o trabalho de cem, apenas apertando alguns botões. E dependente, pois sem a tecnologia que está acostumada, não consegue mais fazer nada. Tudo agora tem em alguma parte interna ou em algum momento de sua fabricação, um computador que comanda a maior parte das tarefas.
O que nos leva ao âmago de nossa sociedade distópica: uma sociedade altamente tecnológica cujos cidadãos vivem isolados em meio a um mar de gente.