domingo, 20 de fevereiro de 2011

Inseto Monstruoso


Entrei naquela sala com um profundo sentimento de confiança. Era o primeiro emprego dentro da minha área. Eu já havia tido outros trabalhos, mas nenhum emprego. E não era um qualquer. Era na melhor firma do mercado. Como consegui tamanha honra, eu não sabia. Sabia apenas que era tudo pelo qual eu havia estudado para.
Eu fui procurando a minha mesa enquanto acenava para os que passavam por mim. Era uma sala grande, com umas vinte mesas, e a menor delas era a minha. Era uma escrivaninha simples com um computador simples em cima. Nada mal para quem tinha acabado de chegar.
No dia anterior eu já tivera uma reunião com minha chefe, na qual ela me explicou qual eram as minhas funções. Consistiam basicamente em processar os dados brutos e transformá-los em relatórios para serem enviados à central. Havia uma pequena pilha de papeis impressos em cima da minha mesa e eu comecei a trabalhar assim que liguei o computador.
O trabalho rendeu bem, e no meio da manhã eu fui procurar um café, já que a faculdade havia me viciado nesse líquido negro. Como não achei logo de cara, fui perguntar a um colega. Ele ficava em uma pequena sala ao lado dos banheiros, no fim do corredor. Havia duas pessoas lá, também curtindo um café. Aproveitei para começar a me enturmar.
Na volta para minha sala, passei olhando as outras salas. As portas eram de vidro e permitiam ver quase tudo. Mas o que eu vi me causou tamanho nojo que eu pensei que ia vomitar. Eu não conseguia acreditar. Mas ali estava. Na sala ao lado da minha, um inseto monstruoso sentado, mexendo no computador.
Eu olhei para os lados, enjoado, buscando uma confirmação para o que eu havia visto. Mas ninguém parecia estar vendo o que eu via. Ou não se importavam. Todos continuavam a trabalhar normalmente, assim como o inseto, que com suas múltiplas patas digitava velozmente. Voltei para minha sala, mas tinha medo de comentar com os outros. Se eu estivesse vendo coisas? Ou pior: se os outros não se importassem com isso?
Tentei trabalhar mais um pouco, mas não consegui. Esperei mais um tempo e arranjei uma desculpa para sair de novo e passar de novo pela sala ao lado. Quando passei lá, tive a confirmação. Havia um inseto trabalhando nesta firma. O trabalho não rendeu mais. Passei o resto da manhã pensando em como uma aberração tinha conseguido entrar para uma firma em que eu, completamente normal, lutara tanto para conseguir.
No horário do almoço, fui convidado pelo colega da mesa ao lado a ir a um pequeno restaurante que havia por perto. Foram ao todo seis pessoas. O almoço serviu para me distrair de minha indignação, pelo menos até eu descobrir que a sala ao lado era a da administração regional, ou seja, a sala dos meus chefes.
Era um absurdo! Um inseto, cascudo, nojento, ser meu superior. Era inaceitável. Uma firma que tem esse tipo de pessoal não poderia ser séria. Eu fiquei remoendo aquilo por toda a tarde. O trabalho aquela altura estava em último plano. No meu primeiro dia no emprego, eu não consegui cumprir minha meta diária e fui para casa assim que deu o horário de eu ir embora.
Enquanto preparava minha janta solitária, tomei uma decisão: não deixaria um inseto estragar a chance que eu tinha esperado tanto para conseguir. E mais: eu chegaria ao lugar que ele ocupava e mais. Mas para isso eu tinha que me esforçar o dobro para tirar a má impressão que havia ficado do meu primeiro dia.
No dia seguinte eu cheguei cedo no trabalho e tirei todo o atraso do dia anterior ainda pela manhã. No almoço, almocei com o mesmo pessoal e de tarde, além do que tinha que fazer para o dia, adiantei o trabalho do dia seguinte. Pelos próximos dias foi assim. Eu trabalhava o dobro do que eu precisava, porque eu tinha um objetivo a cumprir.
Com o tempo, fui descobrindo coisas sobre o meu rival. Uma das primeiras foi o nome dele: Gregor Samsa. Depois fui descobrindo que ele começara no mesmo cargo que eu, que trabalhava aqui há dez anos, que era um dos melhores funcionários da empresa, que era adorado por todos.
Também com o tempo, e muito esforço, eu fui subindo na hierarquia da empresa. Como conseqüência eu fui tendo mais contato com a administração. Sempre que eu o via uma onda de repulsa passava pela minha espinha, mas ele sempre me tratava muito bem. Sempre que ele pedia para eu fazer alguma coisa, era algo razoável. Eu pude ver que as decisões dele eram sempre muito acertadas.
Eu nunca deixei de trabalhar duro, mas conforme eu conhecia Gregor, mais eu entendia que ele estava ali, naquele cargo porque ele merecia. O inseto foi ficando menos nojento, menos cascudo, menos inseto. E eu percebi que a única coisa monstruosa naquela firma, havia sido eu.

4 comentários:

  1. Muito bom! Inspiração máxima!

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  2. Me ocorreu duas interpretações e talvez ambas estejam incorretas.

    Primeiramente me pareceu que todo aquele esforço, aquela necessidade do protagonista solitário de subir na hierarquia da empresa fazia dele um inseto. E ele via-se daquela forma e aquilo causava-lhe repugnância.

    A outra interpretação é que se trata apenas de um “ensaio sobre a inveja”.

    De qualquer forma é um bom texto. Parabéns.

    Abraço

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  3. As interpretações cabem ao leitor e todas são possíveis. Neste caso, não há possibilidade de erro. Vale pensar o que quiser. Achei muito interessante ler o texto e depois ler a interpretação de alguém. Gostei de ambos.

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