sábado, 28 de agosto de 2010

Trilha

Eles já estavam chegando quando o carro bateu com toda a força em uma árvore. A pancada foi forte. O carro ficou destruído. Mas os dois ainda estavam de pé. Tentaram chamar o guincho, mas os celulares estavam fora de cobertura. Eles estavam presos na entrada da trilha. Não havia muito o que fazer, só seguir adiante ou voltar de onde vieram. Decidiram seguir em frente e, depois, ver o que fazer com o carro.
A trilha para o Pico da Manga era fácil, bem demarcada. Toda primavera dezenas de campistas percorriam-na para apreciar a linda vista que se tinha do topo. Isso sem contar que a trilha em si era maravilhosa, cheia de bromélias e orquídeas ao longo do caminho. Mário e Joana, particularmente, apreciavam mais a trilha do que o cume.
Conforme eles avançavam na trilha, foram percebendo que estava muito mais escuro do que seria o normal para àquela hora. As sombras se alongavam formando figuras quase sólidas, tamanha a escuridão. Os pássaros cantavam notas longas e lúgubres, como se anunciassem a própria Morte. Os insetos zuniam, fazendo um monótono barulho de fundo.
Eles seguiam sempre em frente, mas ao redor deles a paisagem escurecia ainda mais. Agora as próprias árvores pareciam sombras sólidas. Tudo parecia ter perdido a substância, como se estivessem em um reino feito de trevas. Mesmo o barulho dos pássaros e dos insetos não era mais o mesmo. Agora definitivamente era uma orquestra tocando uma marcha fúnebre.
No meio das sombras, eles se perderam. Tudo ao seu redor ficou igual, feito da mesma substância e já não havia mais sol para guiá-los. Só uma luz se sobressaia no meio da escuridão. Uma luz amarelada e tremeluzente que vinha da frente, para onde estavam indo. Não tendo outra opção, seguiram-na.
Chegando mais perto, perceberam que a luz que tinham visto era um olho, feito de chamas amarelas com a íris de brasas vermelhas. E o olho falou com eles. “Vocês estão no caminho certo. Apenas sigam a luz e vocês chegarão.” E como chama que era, se apagou. Mas ao se apagar revelou uma outra luz, mais longe, brilhante e completamente branca.
Mário e Joana já não estavam entendendo mais nada, mas se alguma lógica havia naquilo tudo, ela estava na direção da luz. E eles foram para ela. Avançaram pelas trevas, guiados apenas pelo brilho branco no horizonte. E o horizonte foi chegando mais perto e mudando a paisagem.
As formas de treva sólida em que as árvores se transformaram foram se dissolvendo na luz branca e aos poucos eles se viram em uma planície, completamente deserta, andando sobre um caminho delimitado por luz branca, pura e cristalina. Os limites do caminho eram compostos de uma série de ruínas cintilantes que eles não conseguiam entender, mas sabiam que deviam continuar em frente.
Depois de algum tempo sem nada para se ver, exceto o caminho luminoso, surgiu ao longe uma esfera azulada, que refletia o brilho que vinha do chão. Ao chegarem mais perto, eles descobriram que tal esfera estava exatamente no fim do caminho. Mais perto ainda, que era um outro olho, dessa vez de gelo, e que conforme se mexia, pequenos cristais se desprendiam do todo. E ela falou “Vocês estão no caminho certo. Apenas sigam a água e vocês chegarão.” E como gelo que era, derreteu.
E ao derreter, a água em que se transformou virou um pequeno riacho, que seguia em frente. E os dois seguiram o riacho, começando a suspeitar de alguma coisa. O riacho seguia para cima e conforme eles subiam, a trilha ia voltando ao que se esperaria de uma trilha: árvores, pássaros, insetos, tudo. Menos um riacho subindo o morro.
E ao final do riacho, eles finalmente entenderam. E finalmente descansaram.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Sardas

- Tio! Oh tio!!! - Chamava uma garotinha ruiva, com sardas, um vestidinho amarelo com margaridas e sandálias brancas. Ela falava com um homem, nos seus quarenta anos, vestindo um terno cinza com uma gravata vinho. Estavam no meio de uma rua movimentada, em pleno horário de rush. O homem corria, pois ele tinha uma reunião importante com a diretoria da empresa e estava trabalhando para esta reunião há meses.
- Onde está sua mãe, hein menina? - O homem não parava nem para olhar a garota, mas ela continuava o seguindo. Eles passavam por entre as pessoas e ninguém reparava neles. A multidão apenas seguia o seu curso, vivendo suas próprias vidas, já que não havia nada que a tirasse de sua monotonia.
- Oh tio, porque você está tão apressado? Mesmo com esse trânsito você ainda vai chegar cedo. - Por aquilo ele não esperava. Parou. Olhou bem para a menina. Deveria ter uns sete anos. Ele não a conhecia, mas tinha certeza que lhe era familiar. Pensou na escola dos filhos, nos parentes distantes. Nada. Deveria ser só impressão.
- Tá falando do que menina? Como você sabe disso? Aliás, quem é você? - A menina abriu um sorriso discreto, como se soubesse de alguma coisa que não queria contar. As pessoas ao redor deram alguns olhares discretos para o homem, mas continuaram a passar. E ele começou a ficar irritado.
- Estou falando da sua reunião, não é óbvio? Como eu sei? Simples: eu tinha que saber. E quem sou eu? Isso você só vai poder imaginar. - Dessa vez o homem ficou muito irritado. Agarrou a menina pelo braço e começou a levar ela para um posto de policia que havia por ali.
- Quem quer que sejam seus pais eles vão te dar uma bronca. Ficar bisbilhotando a vida dos outros e ainda por cima tirar sarro. Eu vou querer ter uma conversa séria com eles. - As pessoas começaram a olhar para o homem com algum interesse. Não era sempre que se via algo assim.
- Eu se fosse você não faria isso. No final das contas você só vai se atrasar para sua tão esperada reunião. - O homem não estava ouvindo mais. Ele queria apenas se livrar logo desse problema e ir para a reunião. Agora a menina era responsabilidade dele, ele não podia deixá-la sozinha na rua.
- Policial, eu queria entregar essa criança. Eu a encontrei sozinha, aqui nessa rua mesmo, e estava incomodando as pessoas na rua. - O atendente olhou para o homem como se ele tivesse falando o maior dos absurdos, olhou em direção à menina, coçou o queixo e fez cara de quem não estava entendendo nada.
- Meu senhor, de que criança você está falando? - Nesse momento o homem sentiu que a mão dele não estava mais segurando nada. Ele olhou para o lado e não viu a ruivinha, mas ouviu a voz dela em sua cabeça: “Eu não falei? A propósito, boa reunião.”

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Diana

Cheguei ao trabalho ainda meio dormindo. A noite não tinha sido boa, fora curta e sem sonhos. Cumprimentei todo mundo e fui trabalhar. A manhã sempre era a parte mais chata do meu dia. Arrumar os livros devolvidos nas estantes. Levava quase a manhã inteira e era muito cansativo, um ir e vir interminável. Apesar de tudo a manhã passou ligeira e eu fui almoçar. Sozinho. Novamente.
Depois do almoço, eu fui para o meu posto no balcão, para atender os usuários da biblioteca. O movimento estava fraco e resolvi ler um pouco. Peguei um romance que tinha parado no meio e relaxei. Mais para o final da tarde o movimento aumentou e eu tive que parar com o livro. Não era um mar de pessoas, mas tinha bastante gente. Grande parte, estudantes com livros pedidos pelo colégio. Quanto mais trabalho, mais rápido o tempo passava e mais perto eu ficava da hora de ir para casa.
Quando a biblioteca estava quase fechando, ela chegou. Toda afobada e com um livro na mão. Ela andava rápido pela pressa, mas, ao mesmo tempo, parecia flutuar por entre as prateleiras. Era uma jovem, altura mediana, cabelos lisos e negros como obsidiana. Tinha o corpo como se esculpido pelo melhor artesão da Grécia. Os olhos azuis como águas-marinhas, a pele como marfim e a boca como rubi. Ela veio diretamente a mim para ser atendida.
Fiquei uns dez segundos sem reação antes de pegar o livro da mão dela. Eu tinha a mente em outro lugar. Quando voltei a mim peguei o livro da mão dela e percebi que era o mesmo que estava lendo. Estranha coincidência. Ao dar baixa, vi o nome dela: Diana. Um lindo nome para uma linda mulher. E antes mesmo dela sair do balcão, eu estava apaixonado. Eu sabia que era errado, que alguém não pode se apaixonar só pela aparência de outra pessoa, mas não era algo que eu podia controlar. Uma paixão que eu sabia estar fadada ao fracasso.
Eu fui para casa pensando em Diana. No seu jeito de andar, na sua voz, nos seus olhos... Odiava ficar assim. Não era a primeira vez, mas sempre que eu ficava assim era por mulheres mais acessíveis, colegas de classe, companheiras de trabalho... Mas sempre era a mesma coisa: ficava com medo da rejeição e não falava com a pretendida e quando finalmente tomava coragem ou ela estava namorando ou pior, já tinha percebido e por eu não ter falado, me achava um idiota. Fui dormir pensando que dessa vez seria diferente. Da próxima vez que eu a visse, iria tentar alguma coisa, ou eu passaria o resto da vida almoçando sozinho.
No dia seguinte, a manhã passou mais lenta que o normal, os segundos escorriam lentamente se tornando lentamente minutos que viravam horas demoradamente. A pilha de livros para colocar na estante parecia gerar filhos a cada vez que eu olhava para ela. Quando finalmente acabou, já era quase hora do almoço, e fui perguntar para o outro atendente se ele tinha visto uma mulher com a aparência dela. Não tinha.
Fui almoçar correndo para não perder uma oportunidade de vê-la. Quando cheguei me coloquei no meu posto e esperei. Esperei e esperei. Provavelmente se ela viesse, viria no mesmo horário. O pico de movimento chegou e foi embora. Ela deve ter se atrasado novamente. Estava na hora de fechar a biblioteca e ela não tinha aparecido. Ela deve vir amanhã.
O dia seguinte passou rápido como uma geleira. Fiquei esperando por uma aparição do objeto da minha paixão, mas ela não apareceu. A semana escorreu como melaço e, todos os dias, ela não apareceu. O mês passou até que relativamente rápido, mas sem ela. Quando eu vi um ano tinha passado sem que ela surgisse.
Nunca mais vi Diana, mas nunca a esqueci.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Evanescente

Hoje eu tive um sonho.
Um sonho com um castelo todo de granito cinza e com oito torres altas, circulares e no topo de cada uma havia uma varanda que circundava toda a sua extensão. O castelo tinha ao todo trezentas janelas em formato ogival, cada uma decorada com motivos geométricos e tinha quatro grandes pórticos de carvalho com rebites de ferro, um para cada ponto cardeal. Circundando o castelo, e do mesmo material, havia uma extensa muralha dupla, em cima de que uma carroça poderia andar sem problemas e na qual cem soldados com piques e bestas vigiavam sem cessar os quatro portões que havia. Ao redor do castelo, uma pitoresca vila de pequenos comerciantes florescia. Havia uma igrejinha, uma taverna, um mercado, algumas lojas de suprimentos, algumas manufaturas, e muitas residências. As construções eram, em sua maioria, de madeira forte e escura, os telhados eram de palha de trigo, as ruas eram de terra batida e um forte cheiro de fezes de animais pairava no ar.
Deste castelo saiu um cavaleiro, de armadura completa e espada em punho, montado em um cavalo branco. Ele passou pela vila, pelas muralhas e seguiu um caminho por entre os campos de trigo que levava a um outro condado. Ele andou um dia inteiro até sair dos campos de trigo. Uma floresta escura e úmida o rodeava. Ele montou uma pequena fogueira com gravetos mais secos que encontrou, comeu as bolachas e carne seca que trouxera e foi se deitar em um saco de dormir velho e surrado ao lado do fogo que estava quase se extinguindo.
Quando o dia amanheceu, o cavaleiro seguiu viagem. Viajou por mais um dia. Ao final do deste, avistou ao longe seu destino: uma caverna. Ele montou o acampamento e dormiu.
E o sonho se evanesceu.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Eternidade


Nemo se levantou. Não se lembrava de ter deitado ou levantado. Só estava ali como se estivesse deitado desde o inicio dos tempos. Ou talvez antes disso.
Mas agora tinha se levantado e isso é o que era importante. Olhou em volta. Estava no meio de uma planície verde e ensolarada, por onde corria mansamente um riacho de águas claras. Cercando a planície, havia um bosque de árvores frutíferas. Ele começou a andar. Não sabia o porquê nem para onde ia, mas seguia com rapidez indo sempre em frente.
O chão abaixo dele era macio e não havia nenhuma pedra para servir de obstáculo. O capim era alto, mas não se movia enquanto ele caminhava rumo a lugar nenhum. Conforme andava o bosque ficava cada vez mais próximo e Nemo ia em direção a ele, embora não tivesse vontade.
 Chegando ao bosque, percebeu que as árvores eram como quaisquer outras árvores, e o bosque era exatamente igual a qualquer outro bosque. Exceto pelos detalhes. No bosque reinava o mais profundo silêncio. Não se ouvia o menor farfalhar das folhas ou o mais tímido piar dos pássaros. Não havia uma única folha caída e o chão era coberto por musgo verde e úmido.
Embora não tivesse fome, pegou um fruto e o comeu. Embora o fruto fosse macio e suculento, não tinha gosto algum. Era como se nunca o tivesse comido. Acabado o fruto, voltou pelo mesmo caminho que veio. E no chão não havia nenhuma marca, nenhum indicio de que ele tivesse passado por ali antes.
Ele passou pelo lugar onde começou e seguiu adiante, se aproximando do riacho, que corria sobre um leito de pequenas pedras regulares e arredondadas. Sem sede, Nemo pegou a água com as mãos e levou a boca. A água tinha um gosto metálico e não refrescava. Não era quente nem fria. Era como se não tivesse sido bebida.
Impassível, mergulhou no rio e ficou boiando ao sabor da fraca correnteza. Ao mergulhar, não fez barulho e nenhum barulho se ouvia do rio, nenhum murmurar das águas. Ele foi para a margem e saiu do rio. Estava seco como se não tivesse entrado. Foi caminhando de volta, sob um céu azul e sem nuvens onde um sol morno estendia seus pálidos raios sobre a planície sem fazer sombra. Por fim, voltou ao exato lugar onde estivera deitado.
Nemo deitou. Não se lembrava de ter levantado ou deitado. Só estava ali como se fosse permanecer deitado até o final dos tempos. Ou talvez depois disso.